HAMLET | O espetáculo
- Joel Garcia

- 31 de jan. de 2023
- 8 min de leitura
Atualizado: 8 de fev. de 2023
"Bem-vindos ao tormento"!
“ O Bravo vence lealmente; perde somente quando traído e por isso, deve ser vingado”.
Não há, por certo, peça mais fascinante para atores ou diretores do que esse universo em que a própria condição humana é posta em questão: o problema de enfrentarmos tarefas que não buscamos mas que nos são impostas, e de termos por isso de aprofundar-nos em uma dolorosa analise de nós mesmos, a quem devemos conhecer antes de tomar uma atitude em relação a Shakespeare. Acompanhar a evolução de uma obra na qual um homem no gabarito de Hamlet, o original, universitário de Wittenberg, príncipe renascentista, é uma provocante e enriquecedora experiência. Espero e confio, e com isso tenho “sonhado”(delírio, também seria adequado), possa ler o Hamlet algum dia como o fizera pela “primeira vez”. Sabendo ser isso impossível, e desencadeado o processo evolutivo de consciência, jamais retornamos o que éramos antes, e que de forma reflexiva valores do bem e do mal, de vida e morte se estabeleçam não apenas nas convicções morais levantadas pelo personagem. Sei por isso, do risco de não encontrar um “caminho de volta” minimamente identificável. Ou então, o que é ainda mais estimulante, encontrar talento e inteligência cognitiva para uma leitura precisa de HAMLET- "a prece dos atormentados”. - Está engendrado...
É o "Método" que indica e organiza "O Processo Criativo" revelando e fornecendo ferramentas que acabam por estimular a liberdade de criação. Ter um método claro acelera a produção, otimiza custos e o direciona à uma dinâmica na obtenção de resultados pretendidos desde a sua "gestação".
Assim cada projeto requer uma abordagem peculiar, específica, muito clara onde o objetivo é permitir que todo o "team" possa visualizar essa construção na mais absoluta sincronia. Da concepção da ideia embrionária até o produto resultante da diversificação das "mentes privilegiadas", e raras, que me foram generosamente apresentadas, até a definitiva materialização do complexo conjunto de signos e códigos da obra a serem decifrados, fico impedido de qualquer desatenção ou descuidado olhar sob o risco da cristalização primária do processo e a privilegiada consequência da pena vital inviabilizando as infinitas opções que se apresentam expondo uma gama de fascinantes possibilidades. Ao flexibilizar tal procedimento, esse receberá as alterações, adaptações e destinações necessárias às especificidades de cada movimento, cada gesto, palavra, ou intensões construindo o sub-texto. Considero portanto, método eficiente aquele que propõe a leitura exata, dinâmica, precisa, o DNA exalando personalidade. Orgânica, visceral, intensa...
Você sabe qual o resultado almejado. Mas não imagina a dimensão do efeito causado no espectador.
-Essa é a ordem!
HAMLET, a tragédia do príncipe da Dinamarca- é a obra de Shakespeare que mais ganhou destaque na história da dramaturgia ocidental escrita entre 1599/1601. Trata-se de um poema ilimitado pela sua riqueza e qualidade, extraído de um amplo e complexo universo, no qual ainda há muito que explorar e conhecer.
Mas o que, ao longo de mais de quatro séculos e meio, faz essa obra tão fascinante?
A coragem de Hamlet, sua posição de isolamento na defesa da verdade e da integridade, sua relexão na busca de suas mais íntimas convicções, tudo isso torna o personagem atraente, a par da beleza de suas falas, altamente reveladoras de uma figura complexa e rica. A riqueza do texto completo de Hamlet é tamanha que se torna impossível determinar, por exemplo, que em cena sua interpretação terá de ser exclusivamente uma ou outra; ainda que eliminando possíveis tolices e outros "atrevimentos", há muitos caminhos para interpretações válidas, cada uma privilegiando determinados aspectos da vasta unversalidade oferecida pelo Bardo. Privilegiado é o "leitor" que lhe é dado o concentimento de fazer sua versão imaginária e refazê-la, alterá-la, segundo as suas descobertas que vão se revelando em cada frase, em cada diálogo, em cada palavra deste texto inesgotável. Em minha adaptação para o monólogo Hamlet- a prece dos atormentados busquei seguir este caminho.
O desafio estava em construir uma densa narrativa reflexiva sobre os amores, loucura e sanidade, filosofia, poder e moralidade e, todas as circunstâncias da condição humana, o monólogo HAMLET– a prece dos atormentados, em 65 minutos, teria que contemplar um personagem angustiado mergulhado no profundo labirinto que percorre e engloba todos os aspectos da condição humana, na dimensão de seus conflitos interiores em toda a sua fragilidade e grandeza da reflexão sobre a existencialidade, a vida e a morte.
Caberia a nós, interprete(eu) + O Bardo, o fechamento dessa engendra.
OS CÓDIGOS e SIGNOS
A MAQUIAGEM
Absolutamente nenhum elemento deve estar em cena senão para cumprir um propósito. Não é diferente com a "máscara" criada quando da concepção do make-up. O perfil psicológico da personagem exibe um conjunto de códigos e signos a serem decifrados e cabe ao "encenador" deixar isso muito claro utilizando o seu repertório de recursos técnicos que dispõe cenograficamente. É fundamental que uma leitura precisa de cada símbolo seja registrado emocionalmente no espectador de forma que a obra (o todo) exerça uma catarse, a tempestade de sensações. Na imagem, Hamlet mostra a face dividida onde denota o conflitante estado emocional da personagem. Há aqui, os dois Hamlet num mesmo personagem. Hamlet-the ghost e o Príncipe atormentado. Com maior atenção seria oportuno dizer sobre o porque da escolha da "máscara" estar aplicada sobre o lado esquerdo da face revelando o lado direito "in natura", totalmente sem maquiagem ... - Não. Não é por acaso. Nem mesmo pelo aproveitamento estético da expressão ou ângulo que favorece a fotogenia do ator. Códigos e Signos a serem decifrados... lembra?

Esta composição está diretamente relacionada com a função emocional. O conflito e o "tormento" dá-se no lado esquerdo do lóbolo cerebral. O hemisfério esquerdo se encarrega do verbal e analítico, enquanto o direito estaria mais envolvido com o artístico Assim sendo, sinaliza que: apesar das incertezas e "desorganização cognitiva" desferidas ao personagem, permanece incólome o ambiente lúdico do hemisfério direito do cérebro.
- É teatro. É Shakespeare!
O FIGURINO

Ao engendrar a execução de um projeto como do espetáculo HAMLET- a prece dos atormentados - foi fundamental fazer a leitura sempre muito precisa dos infinitos e complexos elementos que compõem todo o processo criativo(e poder da obra), tendo sempre na mira tratar-se de Shakespeare, o maior dramaturgo do nosso tempo, e onde a finalidade é atingir objetivos e resultados compatíveis com a devida importância, a grandiosidade, e principalmente, a compreensão da genialidade do Bardo. Seja por influências da concepção primária ou decorrência intuitiva, ("até mesmo a loucura revela o método"). Fui especialmente feliz ao identificar "personagens" que estabelecem critérios qualitativos nessa construção meticulosa. Profissionais que estão ancorando e dando significado diferenciado de profissionalismo ao mercado com visão apurada de futuro. E claro, muito talento. Reunir num "team" a percepção de meus pensamentos mais profundos com a força da ação é estabelecer uma relação da mais absoluta entrega de todos aqueles que se "arriscam" nesse universo, potencializando a criatividade de maneira única ao "receber" de cada um as soluções que dignificam e redimensionam a "magia do fazer teatral" permitindo uma estética shakespeareana única.

Dessa forma, conto com o privilegio da desing de moda e superfície Anne Anicet que assina a marca Contextura - Arte, moda e texturas sustentáveis, na exucução do figurino conferindo força e dramaticidade ao personagem.
OS SAPATOS
Sólido, rígido, duro, macio ou confortável. Agressivo, singelo ou sedutor... Mais do que uma invenção humana para proteção dos pés, o calçado sempre foi um símbolo de status e poder. Resquícios históricos e outras evidências mostram que a existência do calçado começou há pelo menos, no período paleolítico (10.000 a. C).
Foi na Grécia Antiga, berço da cultura ocidental por sua arte e sua filosofia, que deus-se a superação no ramo calçadista ao lançar a moda de modelos diferentes para os pés direito e esquerdo. “Para os gregos, o sapato era um objeto cheio de significados. Em uma cultura na qual as performances de todos os tipos eram marcadas por rituais, o calçado virou símbolo de status. Estar descalço ou calçado fazia toda a diferença entre o que era proveniente da natureza ou o que era hábito do social. Representava ambiente interno e externo, público e privado, masculino e feminino, cidadão comum ou do alto escalão”. No final do século VI a.C., o sapato passa a dar sua contribuição ao universo teatral. Há época conhecido como "kothornoi"(coturno), um sapato com plataforma de madeira cuja altura variava de 6 a 11 cm conforme a importância do personagem.
Em 2021 de nosso tempo, HAMLET- a prece dos atormentados- haveria que respeitar-se essa interpretação meticulosa, e assim se fez. Mais do que uma simples peça da indumentária cênica, busquei no sapato uma digital que complementasse essa importante e indispensável simbologia, que traduzisse de forma precisa a descrição do personagem:
"Tal qual nômade peregrino por suas vividas lembranças como se fossem afrescos nas paredes da minha mente...".


Nessa construção fêz-se necessário encontrar os elementos complementares desse complexo e instigante universo a ser decifrado. Christian Thomas do Studio 10 fez a leitura exata de uma partitura onde o repertório é senão o talento criativo, por definição.

É teatro. É Shakespeare!
NO PRINCÍPIO, É A INSPIRAÇÃO
Na busca de inspiração as fontes são variadas. E infinitas.
O primeiro passo se deu pela pesquisa, isto é, a procura de informações que vem de livros acadêmicos, dissertações, ensaios sobre a obra, sobre Shakespeare, lembrando que esse material é sempre e tão somente a opinião dos outros, pois mesmo os acadêmicos mais aprofundados e eruditos nos oferecem nada mais que seus pontos de vista subjetivos. Desses, os acadêmicos, é sempre oportuno ser cauteloso. Não encontrei autoridade alguma que pudesse declarar, de modo definitivo, o que é certo ou não. Tudo é possível!
"O universo é um infinito de possibilidades"
A segunda fonte de inspiração é a mais solitária. A imaginação.
Em solitude, devemos nos quesionar o que nos atrai na narrativa a ser construída. No personagem, o que me seduz, o que mais me toca e comove, o que há de misterioso e intrigante. O que é que na narrativa e no personagem, fala mais diretamente sobre sua vida e do seu mundo; pois que, o teatro não é um museu, o teatro é o espelho do mundo.
A derradeira fonte de inspiração, a terceira, foi a mais complexa e também a mais significativa. O texto. Fazer uma adaptação de Hamlet, a tragédia do príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, peça celebrada no mundo inteiro, e que tem tirado o sono de diretores e atores dos mais diversos matizes, com o personagem mais intrigante da dramaturgia ocidental e seu "Ser ou ser" como a mais famosa frase do repertório do universo e transforma-lo num monólogo...
"Até mesmo a loucura revela o método"
A HORA DA TRANSPIRAÇÃO
A sensibilidade moderna (ou a falta desta) é, sem dúvida, muito distante daquela vigente durante o período elizabetano, a era do Bardo. Não se trata de simplesmente do uso das palavras ou expressões que já não existem. Trata-se do ritmo alucinante dos tempos modernos, mais intenso, mais frenético, mais efêmero, graças à tecnologia, ao cinema e à televisão, os smartfones, à internet, a boa prática da leitura caiu em desuso, o bom hábito das conversas estão cifrados nos aplicativos de mensagens, o falar e ouvir os outros é um estranhamento surpreendente. Há uma infinidade de abstrações e distrações e exigências visuais disponíveis que nos deixaram impacientes com a palavra. As peças de Shakespeare são longas demais para a sensibilidade inexistente e moderna.

De fato, numa primeira leitura, o texto em inglês não é lá muito "amigável" ao leitor de ocasião. É preciso decifrar as palavras desconhecidas com ajuda do glossário no rodapé da página. É preciso tempo, paciencia e dedicação. Há um prazer enorme no ritmo e na musicalidade sublime no texto original shakespeareano, na organização e nos deliciosos jogos de palavras, que são insuperáveis.
- Sem dúvida, o homem de Stratford era um gênio!
"Mas de que serve esse ritmo maravilhoso e sua musicalidade sublime se não for possível entender seu conteúdo, aquilo que Shakespeare nos diz sobre nós mesmos e sobre o mundo a nossa volta?"
É preciso estudar a obra com cuidado apurado, decifrar os trechos mais complexos com persistência e, só então, se perguntar se é possível entregar para a platéia as ideias incríveis e imagens estarrecedoras de forma compreenssível com facilidade e prazer para que se entenda tudo o que está sendo dito em cena, no calor da ação. Então se, e quando, a resposta for afirmativa,
- Seguimos...





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